Era quase nove horas da noite de mais um domingo. Mais um domingo qualquer de outros tantos, que antes, até, eram diferentes, mas nos últimos anos repetiam-se como rituais. Ele fuçava na net os resultados da rodada do campeonato nacional de futebol. Seu time perdera mais uma e ele fazia contas de quantos pontos ainda estariam em disputa e quantos o time precisaria para escapar do rebaixamento. O futebol pelo mundo, Fórmula 1, vôlei, basquete, futsal, atletismo, baseball... Peraí não tem campeonato brasileiro de baseball. Voltar.
De repente, como um déjà vu, percebe que aquela cena não era inédita. Há alguns anos que - nem conseguia lembrar com precisão quantos - invariavelmente, sentava-se à frente do computador preocupado com esportes, preocupado com seu time, ocupando a mente com as mesmas coisas de sempre. Sempre a mesma coisa.
Veio-lhe uma sensação estranha no estômago. Não era a azia que normalmente o incomodava aos domingos, recorrente dos exageros na comida e na cerveja. Um mal-estar que transcendia o problema gástrico. Diferente da enorme pança que estava cheia percebeu um vazio em sua mente. Um vazio existencial.
Náusea, e não era ressaca do pilequinho do meio-dia. Diferente; esquisito. O único pensamento que lhe ocorria era: O que é que eu estou fazendo da minha vida?
- Amor já é tarde. Desliga esse computador e vai tomar banho que já começou o Fantástico! A ordem o tirou momentaneamente do momentâneo transe que se encontrava.
- Já vou. Respondeu num reflexo condicionado dos anos de rotina.
Entradas denunciavam a calvície hereditária dos ralos cabelos que apresentavam os primeiros sinais da idade. Barba por fazer, no rosto inchado. Olhos pequenos de sono e cansaço, apesar do dia moribundo que estava terminando. A barriga proeminente encostava-se ao console da mesa do computador, esta mesma barriga que escapava da bermuda surrada. Havaina velha nos pés, a extremidade daquelas pernas finas e compridas, típicas de uma pessoa sedentária. Aquele homem sentado ali era Otávio, 41 anos. Uma esposa, dois filhos, dois cachorros. Uma casa confortável, dois carros na garagem... E uma vida besta.
Um clic fecha a internet. Outro clic, menu iniciar. Desligar o computador. Clic. Arrasta o corpo pesado com 86Kg mal distribuídos no 1,74m de altura até o banheiro. Acende a luz e dá de cara com uma figura familiar. Reconhece o cara parado ali, mas não acredita. O que é isso? Quem é esse? Olha para o espelho e não gosta do que vê. A imagem refletida não parece com ele, mas não tinha como evitar, era o próprio. Não aquilo que gostaria que fosse, mas aquele que realmente era e é: Um homem nada atraente, nada interessante, desprovido dos atributos físicos da juventude de outrora quando praticava esporte; quando causava suspiros nas meninas, por onde passava; quando a mulher, que agora estava deitada na cama do quarto ao lado, se apaixonara. Um rascunho mal acabado do que era no passado. Quando ainda estava vivo.
Sim, quando ainda estava vivo, pensou Otávio ao entrar no box e ligar a ducha. Enquanto esfregava o sabonete por todo o corpo transformado pelo tempo, não deixava de se questionar. O que aconteceu comigo? O que eu estou fazendo da minha vida? A pergunta voltou e a sensação estranha ainda incomodava-lhe. A espuma do xampu ardeu nos olhos abertos diante da inquietação que tomava Otávio. Demorou mais do que o costume. Fechou o registro e pegou a toalha para enxugar-se. A cada parte que enxugava mais indignado ficava. Percebeu a dificuldade, não só pela falta de elasticidade, como também pelo considerável tamanho, a quantidade maior de pele adquirida nos últimos tempos.
Meio molhado, entra no quarto enrolado na toalha. Pega o pijama no cabideiro cheio de roupas, veste-se e joga a toalha na cama, onde Marina está deitada e hipnotizada com os olhos fixos na televisão.
- Que demora Otávio. Já fechou tudo? Apagou as luzes? Tratou os cachorros? As crianças já estão deitadas? E vai estender essa toalha!
- Marina... Você acha que eu estou gordo?
- Para de besteira! Vai lá fazer as coisas e vem logo p?rá cama. Amanhã é segunda e o teu dia de deixar as crianças no colégio e já são quase 11.
Contrariado, sai pela porta para atender as ordens da mulher. Depois de alguns minutos retorna e incontido pela angústia que estava sentindo, esbraveja.
- Estou de saco cheio! Todo domingo é a mesma coisa. Todo semana é igual. Não agüento mais essa porcaria de vida. É Catar as merdas do cachorro; é mercado; fazer o almoço; os teus filhos que nunca estão em casa ou nem saem do quarto naquele computador. Dormir, depois ficar viajando nestes programas de domingo. Nem sexo a gente faz mais. E ainda por cima, vem você sempre dizendo o que eu tenho que fazer.
- Que isso Otávio, tá ficando doido? Vai dar ?piti? agora. É domingo; olha a hora! Ó!...e tá começando os gols da rodada.
- É... Então aumenta o som aí e cala a boca!
Michel Jaques - michel.jaques@yahoo.com.br
edição 1247
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