Dados não derrubam o preconceito, educação, sim - Jornal Cruzeiro do Vale

Dados não derrubam o preconceito, educação, sim

Por Lucelmo Lacerda, doutor em Educação, com Pós-doutorado em Psicologia e pesquisador de Autismo e Inclusão, autor do livro “Crítica à Pseudociência em Educação Especial – Trilhas de uma educação inclusiva baseada em evidências”.

Por Flávia Marçal, advogada, doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia e gestora do Grupo Mundo Azul.

Veiculada em mídia nacional, recente matéria tratou acerca da negativa de matrícula de pessoas com autismo em escolas. Nela uma mãe inicia um sofrido relato sobre a busca em mais de seis escolas para matricular seu filho. Em cinco delas, recebeu uma resposta negativa.

A reportagem menciona a existência de resoluções de conselhos municipais e estaduais que estariam estipulando limites para as matrículas de pessoas com autismo, o que é francamente contrário ao ordenamento jurídico brasileiro, pois afronta inúmeros institutos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais.

Destacamos aqui três pontos para debate: o fundamental direito à educação; os dados estatísticos desta população; e a sobrevivência de um Brasil que sempre achamos que ficou para trás.

Sobre o primeiro ponto é necessário relembrar que, além de constitucionalmente previsto, o Direito à Educação é considerado um direito habilitante na medida em que saber ler e escrever é chave essencial para a cidadania na era da informação, isto é, sem a consecução plena deste direito, muitos dos demais não podem ser acessados. E este direito abarca todos os brasileiros, independentemente de quaisquer características dos indivíduos.

No entanto, ao cruzarmos o reconhecimento deste direito com os dados das mais de 18 milhões de pessoas com deficiência no Brasil (PNAD, 2022), vemos que as taxas de analfabetismo, fundamental incompleto e ensino médio completo são, respectivamente, de 19,5%, 63,3% e 25,6% entre pessoas com deficiência e de 4,1%, 29,9% e 57,7% entre aqueles sem deficiência, escancarando uma grave desigualdade no acesso, permanência e aprendizagem do público autista (que compõe a população com deficiência).

Temos então o terceiro ponto, o de um Brasil fantasiado de inclusivo, de uma democracia social que desconhece limites de raça, credo, condição econômica ou de deficiência. São violências reais e simbólicas que seguem ocorrendo sem desencadear medidas efetivas, até mesmo de quem possui o dever legal de salvaguarda.

Quando não se enfrenta uma violência ela tende a nos assombrar. Ouvir todos os lados precisa ter o condão de apoio social ao respeito. É preciso encontrar soluções para tirar das escolas o vergonhoso véu de exclusão que lhes desonra e valorizar seu lugar primordial na construção de conhecimento e quebra de barreiras.

Pautar a organização da educação inclusiva em estudos técnicos, com práticas baseadas em evidências, capacitação continuada e programas de fomento, com destaque para ampliação do suporte financeiro às escolas públicas e privadas, são pontos primordiais ao debate.

Em cenas do clássico filme “O ovo da serpente” é possível intuir a árvore pela semente e a brutal violência causada pelo preconceito. Ao permitirmos que em rede nacional sejam defendidas ideias excludentes e notoriamente contrárias à legislação, sem que nos levantemos eivados de indignação, em nada nos diferencia daqueles que já defenderam a possibilidade de classificar seres humanos.

Dados não derrubam o preconceito.  Educação sim. Educação para vivermos em um mundo menos ignorante do que este que insiste em nos rodear. A história cobrará seu preço e não haverá meios de expiar esse passado se nossas ações não se modificarem na urgência necessária.

 

Edição 2136

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