"Já deveria ter contado essa história há muito tempo. Não fiz porque foi-me dito para esperar uma autorização e também porque agora encontrei alguém para escrever no computador pra mim, porque não sei usar computador. Por favor, leiam até o final, vale a pena. Vai ajudar na tua vida.
Em 2005 recebi o diagnóstico que tinha câncer e teria pouco tempo de vida. Eu era sozinho na vida. Meus pais já tinham morrido, meus irmãos não se importariam muito, ninguém iria sofrer. Sozinho. Estava chocado. Desci do ônibus no Centro de Gaspar, daí resolvi ir até à Igreja Matriz chorar e rezar um pouco. Era uma sexta-feira, 12 de agosto. Entrei e tinha um grupo de crianças rezando. Daí fui sentar no último banco, do lado esquerdo. Não queria que me vissem chorando. Tava de cabeça baixa, tentando rezar, e senti que alguém sentou do meu lado. Olhei e vi um padre vestido de franciscano, cabelos brancos, um rosto sério, mas parecia confiável, sábio. Ele olhou de forma bondosa pra mim e perguntou:
- Quer conversar, filho?
Contei a ele porque estava chorando. Nem lembrei de me confessar. Fazia tanto tempo que não ia à igreja, não lembrava mais dessas coisas.
Muito sério, ele me disse: - Posso te ajudar a se sentir melhor e se preparar, mas você terá que vir aqui por 7 dias, sempre às 18 horas. Nesse mesmo lugar. Cada dia vou te passar uma tarefa para fazer. Vai ser algo bom pra você.
Eu disse: - Tá bom, eu venho, sim.
Acho que disse por dizer. Já tava pensando em não cumprir o que disse para o padre.
Ele sorriu (parecia que sabia o que eu tava pensando) e disse: - Primeira tarefa: você vai pegar uma ou duas folhas de caderno, quantas precisar. Vai dividir elas no meio, fazendo duas colunas. Então, na primeira coluna você vai escrever o nome das pessoas que te magoaram e como te magoaram. Faça isso, sem pressa. Mas traga essa lista no domingo, no nosso primeiro encontro. E traz uma caneta também.
Eu fiz. Lembrei de muita coisa. Coisas que já devia ter esquecido. E fui no domingo. Quando cheguei na igreja, o padre estava me esperando no último banco. Ele rezava o terço. Então, sentei do seu lado e esperei. Daí ele disse: - Sabia que você viria. Me fala da sua lista.
Eu li pra ele. Expliquei algumas coisas. Chorei quando lembrei de algumas pessoas.
- Agora você vai escrever do lado de cada pessoa, fato dessa lista: Eu perdoo. Eu esqueço. Pensa cada um e perdoa mesmo. Reza pela pessoa e por você se precisar. Quando terminar, vai ali na frente da igreja, queima essas folhas e deixa as cinzas irem embora com o vento e a mágoa também. Depois, volta aqui.
Fiz como ele disse. Quando voltei, parecia que tinha tirado um grande peso das costas.
- Está melhor, filho? Vamos para a tarefa de segunda-feira: você vai pegar outras folhas de caderno, dividir no meio e na primeira coluna vai escrever o nome de todas as pessoas que você magoou, feriu, ofendeu. Escreve também os fatos e traz amanhã.
Ele se foi e me deixou ali pensando. Foi difícil lembrar. Fiz tão rápido a primeira tarefa e essa foi um tormento. Mas fiz, devo ter esquecido muita coisa. Voltei no outro dia e lá estava ele. Sentei ao seu lado e cumprimentei.
- Sempre lembramos de quem nos magoa, mas esquecemos quando magoamos e ofendemos, né? Conta pra mim o que você escreveu.
Parecia que ele lia meus pensamentos. Baixei a cabeça. Li pra ele o que escrevi. Eu tava com muita vergonha.
- Agora, na segunda coluna você vai escrever do lado de cada nome: Eu peço perdão. Eu me perdoo. Sem pressa. Depois queima lá na frente, deixa o vento levar e começa a te libertar. Depois, volta aqui.
Repeti o ritual, mas agora pedindo perdão e voltei na igreja. Ele ainda me esperava.
- Está bem, filho? Depois, quando encontrar essas pessoas, pede perdão a elas, sem pressa. Vai te fazer bem.
Fiz que sim com a cabeça, não disse nada, porque tava chorando.
- Tarefa para a terça-feira: compre um caderno, pode ser pequeno. Você vai por a data e copiar a oração de São Francisco, pensando em cada frase. Depois vai escrever tudo o que você tem para agradecer na sua vida, tudo de bom que já recebeu. Traz o caderno pra mim amanhã.
- Eu não sei que oração é essa.
- Essa aqui. Leve com você esse cartão.
Ele me mostrou um cartão com a imagem de São Francisco que estava em cima do banco da igreja e eu não tinha visto. Lembro que pensei em deixar isso tudo pra lá. Eu ia ao posto de saúde para tentar marcar outros exames, ver se conseguiria fazer algum tratamento, e estava ali de conversa com um padre que nem conhecia e me pedia umas tarefas sem sentido. Mas, antes de chegar em casa, parei no mercado e comprei o caderno. Cheguei em casa, tomei um café preto fumando meu cigarro, olhando pra nada e pensando no que estava acontecendo. Tomei um banho e comecei a tarefa: Senhor, fazei-me um instrumento…
Nesse dia, cheguei um pouco mais cedo e andei até o altar da igreja. Era a primeira vez que percebia como ela era bonita e como era bom ficar ali. Perto das 18 horas fui sentar lá atrás e o padre estava me esperando. Ele estava sério, mas seus olhos sorriam. Me senti bem em perceber que ele ficou contente em me ver. Li pra ele o que escrevi. Sempre reclamei muito da vida e nunca tinha percebido o quanto de coisa que tinha para agradecer. Daí, ele me falou algo assim:
- A gente acha que é vítima de tudo e de todos. Não percebemos o que de bom nos acontece. São Francisco nos ensinou a olhar para os desvalidos, para os sofredores e perceber o quanto temos a agradecer. Para quarta-feira vou te pedir algo mais difícil, mas é importante para você começar a entender de fato o que estou querendo te passar. Disse que ia te preparar e ajudar. E essa ajuda passa pela tua mudança. Primeiro, sei que você acorda cedo. Antes de ir para o trabalho, copie de novo a oração de São Francisco no seu caderno. Será sua oração da manhã. Depois do trabalho, vá visitar o orfanato da cidade [tem outro nome hoje, mas há muita criança lá]. Você vai ser voluntário. Vai se oferecer para fazer algo para essas crianças. Pode ser um bolo, uma sopa, consertar algo, limpar a casa. Não é para levar presentes, é para fazer algo. É para doar o seu tempo. E o mais importante: escute as crianças. Conheça suas histórias.
- Padre, não sei se as pessoas vão deixar eu fazer isso.
- Você vai encontrar uma velha conhecida. Explique o que estás fazendo. Ela vai achar estranho, mas vai te ajudar.
Fui para casa sem acreditar que conseguiria algo. Já pensando nas desculpas que daria. Descobri que o orfanato se chamava Casa Lar e era no bairro Sete. Depois do trabalho, ia bater lá. Saí às 13h30 do trabalho, almocei na lanchonete em frente as Linhas Círculo e fui até a Casa Lar. Cheguei lá uma colega dos tempos de escola me atendeu. Ela trabalhava lá. Lembrei do que o padre falou e me perguntei como ele sabia? Um pouco envergonhado, expliquei pra ela minha tarefa. Ela ficou desconfiada, mas me chamou pra trabalhar na cozinha, onde ela trabalhava. Fiz pão e aprendi a fazer bolo. Depois, fui ajudar a servir as crianças. Elas já foram me chamando de tio e perguntando quem eu era. Nunca fui bom com crianças, mas conversei com elas e vi como era triste não ter pais, ser abandonado. Agradeci minha colega e perguntei se poderia ajudar outras vezes. Ela disse que teria que pedir permissão da diretora. Dali, fui para a igreja. O padre, que eu ainda não sabia o nome, porque sempre esquecia de perguntar, me esperava. Sério, mas os olhos sorrindo.
- Oi, filho. Como foi a sua tarde?
- Muito boa, mas triste, também.
- Entendo. “Onde houver tristeza, que eu leve alegria.” Você levou alegria?
- Acho que sim.
- Acha?
- É, eu levei alegria. Mas acho que mais eles que me trouxeram alegria, sabe?
- “É dando que se recebe.” Escreva sobre isso no seu caderno. E também agradeça. No seu caderno, todas as manhãs, você vai copiar a oração de São Francisco e toda noite você agradecerá algo do seu dia. Firme para mais um desafio?
- Sim. Eu não sei bem o que está acontecendo, mas tudo isso tem mexido comigo. Às vezes, eu quero parar, mas depois quero continuar.
- Nos desafiarmos a mudar é assim mesmo. É mais fácil ficar acomodado. Mas isso ainda não é sua mudança. Mudar será fazer diferente depois desses 7 dias. Para quinta-feira, você irá procurar alguém idoso para ajudar, para conversar. Pode ser num asilo, pode ser alguém que viva só. Pode roçar grama, limpar a casa, lavar a roupa. Mas é você que tem que fazer. O mais importante é conversar, conhecer a história dessa pessoa, saber por que ela está sozinha.
- Não consigo lembrar de ninguém. E aqui não tem asilo.
- Não se preocupe. Antes de sair do seu trabalho vão te lembrar de muitos idosos. E eles não estão longe.
Não entendi bem o que o padre disse. Quinta seria um dia cheio. Tinha que ir no posto de saúde, não ia dar conta disso até as 18 horas. Só um câncer pra me fazer essas loucuras, mesmo. Acordei as 4h, copiei a oração e fui trabalhar. Depois do trabalho, fui para o posto de saúde. Estava na recepção esperando ser chamado e vi um senhor saindo do atendimento. Ele tinha curativos no rosto e o braço estava com gesso. Olhei bem pra ele e vi que era o tio Antônio, um amigo do meu pai. Não era meu tio, mas sempre chamei ele assim. Desde que o meu pai morreu não vi mais ele. Fui até ele e falei:
- Oi, tio Antônio! O que aconteceu?
- Zequinha? Tá parecido com teu pai, ficando careca também. Caí no banheiro, menino.
Lembrei que o tio Antônio era solteiro e morava sozinho. O padre parecia saber o futuro.
- Como o tio vai pra casa?
- Agora tem ônibus que passa na frente de casa.
- O tio pode esperar eu ser atendido e depois levo o senhor em casa. Pode ser? Não vai demorar. Só vou pegar guias para uns exames.
Ele parecia não querer esperar e eu não podia perder a consulta. Daí insisti.
- Queria perguntar umas coisas do meu pai.
- Tá bom, menino. Se é para falar do Valdir, eu espero.
Logo fui chamado, ainda bem. Depois, levei ele em casa. O tio Antônio ainda morava na casa que foi dos seus pais. Uma velha casa de madeira, sem pintura e, para o meu espanto, caindo aos pedaços. Telhas quebradas, calha caída, mato tomando conta. Me senti culpado, pois o tio foi o melhor amigo de meu pai e segurou algumas barras do velho e nossas. Entramos em casa e ele foi por água esquentar para o café e nosso bate-papo. Fui perguntando algumas coisas de quando era criança. De repente, ficamos em silêncio. Daí perguntei:
- Tio, vi que o box do banheiro quebrou. Posso arrumar pro tio?
- Que isso menino? Amanhã chamo alguém pra arrumar.
- É rápido, tio. Até alguém vir aqui, como o senhor vai tomar banho?
- É, pode ser, então. Mas não queria dar trabalho.
- Esquenta, não. Descansa aí.
Tirei o que estava quebrado, arrumei do jeito que deu. Teria que voltar, talvez por umas barras para ele não cair. Quando cheguei na sala, ele dormia no sofá. Aproveitei e fui arrumar a calha e trocar as telhas. Quando vi, já era quatro e meia, mas tinha muita coisa ali para fazer. Teria que voltar outros dias. A culpa voltou. Como esqueci do tio? Talvez porque nunca parei para pensar nos outros, só lamentando a vida e tendo pensa de mim. Fui pra cozinha, fiz uma sopa com o que tinha, não muito. Depois, acordei o tio, falei da sopa e disse que voltaria no outro dia. Sabia que ele era orgulhoso, daí falei que ia ajudar enquanto ele estivesse com o braço quebrado. Vi lágrimas nos olhos dele. Ele disfarçou e disse que ia me esperar. Dali, fui encontrar o padre. Cheguei na igreja ele já estava lá. Quando sentei do seu lado, ele falou:
- “Onde houver desespero, que eu leve a esperança.”
- Padre, como o senhor sabe o que vai acontecer?
- Eu não sei, só estou pedindo que Deus lhe envie sinais.
- Mas o senhor sabe dos sinais antes.
- Como foi lá?
- Difícil. O Tio está sozinho. Como não vi isso? Vou fazer o que puder por ele nesse tempo que me resta.
- Sim. Mas lembre-se de que o mais importante é a tua companhia, ouvir, conversar. O que mais você pensou?
- Eu não vou envelhecer, mas sou sozinho como o tio. Se eu ficar fraco e não conseguir fazer as coisas, vou ficar como ele.
- Sim. Não se cobre muito. Você voltou pra vida dele e ele pra sua no momento certo. Quer continuar? Tenho mais duas tarefas para você. Mas já deu para perceber que está ficando mais difícil, né?
- Difícil porque mexe com coisas que eu fui deixando rolar. Como vou morrer, eu devia tá fazendo festa. Não sei por que venho aqui todo dia. Mas quero vir amanhã, sim. Qual o desafio de sexta-feira?
- José, no domingo você aprendeu a perdoar e esquecer. Na segunda, a ser perdoado e se perdoar. Na terça, a agradecer. Na quarta, a alegria na caridade. Na quinta, aprendeu solidariedade e empatia. Lembre-se que cada dia desta semana é um começo de coisas que você deverá continuar depois, pois mudar é um processo contínuo. E toda mudança passa também por um sacrifício. Você está com câncer nos pulmões, mas não pensou em deixar de fumar, nem cuidar melhor do seu corpo. Você se apega a esse prazer. Prazer que traz muita dor, não é?
- O senhor está pedindo para eu parar de fumar? Isso é impossível.
Ele me olhava sério, me cobrando, sabe? Eu sabia que tinha que parar, o médico falou. E não tinha como fazer quimioterapia e continuar fumando.
- Te ajudar a passa pela tua mudança. E não poderei te ajudar, se você não se ajudar. Esse é um sacrifício pequeno se você comparar o que a vida exige de outras pessoas. Deixe seus cigarros aqui e pare. Vá para casa, escreva o seu agradecimento do dia. Você consegue.
Foi o que eu fiz. Deixei os cigarros lá. Foi uma noite de insônia e uma sexta terrível pela falta do cigarro. Voltei a casa do tio Antônio com compras. Ajudei ele no banho, fiz um pão, rocei a grama, lavei as roupas, limpei a casa que estava muito suja. O trabalho ajudava a esquecer o cigarro um pouco. Lembrei histórias de criança com o tio, foi uma conversa ótima. Quando fui embora ele tinha um olhar agradecido, mas também percebi um medo. Acho que tinha medo que eu não voltasse. Mas, eu voltaria sim.
Às 18 horas estava lá na igreja, irritado. Sentindo muita falta do cigarro. Cansado. Levantei duas vezes para ir embora. Não sei o que me fazia ficar. Ainda mais agora. Estava de cabeça baixa, tremendo as pernas. Nem percebi o padre chegar. Quando vi, ele já estava sentado do meu lado e entre nós tinha um galho de árvore, como um bastão. No banco, um livro. Daí, ele falou:
- Quanto mais a gente adia um sacrifício, mais difícil ele é. Somos muito bonzinhos com a gente mesmo. Sempre vamos nos dando desculpas para continuar errar. Mas você vai conseguir. Acredite mais. Olhe tudo o que você fez essa semana!
Fiquei em silêncio, não tinha o que falar. Comecei a chorar e não era só pela falta do cigarro. Era porque tinha alguém que acreditava em mim de novo e eu não queria decepcionar. Então, finalmente lembrei da pergunta que sempre esquecia.
- Qual o seu nome padre?
- Godofredo. Esse é o meu nome.
- Padre Godofredo, desculpa não ter perguntado o seu nome antes.
- José, você gostaria de se curar?
- Tenho pensado nisso. Quero sim. Queria ter a chance de fazer tudo diferente. Casar, ter filhos. Prestar mais atenção nas pessoas que precisam de ajuda. Mas eu não acredito em milagres, padre. Desculpa. Nunca fui religioso. Nem sei se devo fazer o tratamento, sabe.
- Religião, religare, quer dizer ‘ligar-se a Deus novamente’. Porque foi dele que viemos, então estamos nos religando a ele. Nessa semana você se religou a Deus. Você orou, perdoou, agradeceu. E o mais importante: ajudou outras pessoas, fez caridade. Como São Francisco nos ensinou, a fé precisa de obras. O último desafio pode te deixar mais perto da cura. Na verdade, a mudança que você começou em si, te deixou mais perto da cura. O que muitos chamam de milagres, eu gosto de pensar como uma mudança que leva às curas e vitórias. Sabe por que temos poucos milagres do mundo? Porque as pessoas acham que é um presente e que todas são merecedoras. Elas não estão dispostas a mudar sua vida para alcançar os milagres. Estou muito orgulhoso de cada passo que você deu. Mas foram apenas seis passos, e o que você ter precisa de uma grande caminhada. Seu desafio de sábado é caminhar para renascer.
- Só caminhar?
- Peregrinar. São Francisco foi um santo caminhante, peregrino, e foi em suas jornadas que ele aprendeu e ensinou. Vou te propor uma pequena peregrinação entre algumas capelas aqui da cidade, por isso trouxe esse bastão de peregrino, porque é uma caminhada de renascimento. Você não precisará levar muita coisa: um cobertor, um pouco de comida e água para dois, três dias. Leve seu caderno. Irás querer ler e escrever algumas coisas. Terás conhecidos no caminho. Não tenha vergonha de pedir abrigo e comida. Se precisar dormir ao relento, não tenha medo. Você irá sair da Capela São Francisco, ali no bairro Figueira; e pelo interior irá até a Capela São Cristóvão. Não é pra ir pela rodovia. Vá pelas Águas Negras. Depois, você vê o caminho certo. Estás vendo este livro? É a história de São Francisco e Santa Clara, que você deverá refletir durante a peregrinação. Leia um capítulo antes de sair. Chegando na Capela São Cristóvão, descanse e leia mais um trecho e pense nela até a Capela Santo Antônio, onde você passará a noite. Não tenha pressa, ande o que aguentar a cada dia. Você até vai achar que fará tudo amanhã, mas eu digo que terás que dormir pelo caminho. Depois, vá até a Capela Santo Agostinho. Por fim, você irá até a Capela de Santa Clara. Depois que você fez o caminho de São Francisco até Santa Clara e conheceu a história desses santos, entenderás melhor cada desafio que fiz para a sua mudança. Pra cada capela que você conseguir chegar, faça uma pequena cruz em seu cajado. Esse é o caminho da peregrinação. Da Capela de Santa Clara, você virá até essa igreja que foi construída em homenagem a São Pedro Apóstolo. Daí você poderá vir pela rodovia. Estarei te esperando em qualquer dia e horário, não tenha pressa. Nosso sétimo dia de encontro não precisa ser no sábado.
O padre se levantou e foi caminhando em direção ao altar pelo corredor central da igreja. Fiquei me perguntando se conseguiria fazer essa caminhada. Quantos quilômetros seriam? Estava fazendo o caminho na minha cabeça, pensando as ruas que deveria seguir. Resolvi ir pra casa e tentar fazer um mapa. Peguei o livro e o bastão. Foi aí que percebi duas coisas: não estava mais sentindo vontade fumar. Era como se eu nunca tivesse fumado na vida. Eu ia mesmo fazer a peregrinação que o padre pediu.
No sábado de manhã procurei por mapa no Centro. Na Secretaria de Turismo me mostraram um mapa. Ajudou um pouco, mas iria ter que perguntar pelo caminho. A parte mais difícil seria da capela Santo Antônio até a Santo Agostinho. A história aqui é longa. Como preciso enviar logo essa história, a moça que está digitando deu a ideia de contar depois. Acho que é o melhor, ela disse que daria um livro.
Na época, achava que era uns 50km. Mas hoje dá para ver no computador e parece que dá 40km. Mesmo assim, achei que daria conta num dia, mas não aguentei. No primeiro dia fui até a Capela Santo Antônio. Ali encontrei conhecidos e jantei na casa deles. Mas preferi dormir próximo à capela, porque queria ficar sozinho. Tinha umas caixas de papelão. Forrei o chão com elas. Ainda bem que levei um cobertorzinho, lá em cima é frio. Li uma boa parte do livro. E pensei muito, muito em como gostaria de uma segunda chance pra fazer tudo diferente. O segundo dia foi mais difícil. Meus pés tinham bolhas e não levei nada para curativo, dei um jeito. O sol não tinha nascido ainda quando recomecei a caminhar. Quem me viu pela estrada achou que eu era louco ou mendigo. Todos me olharam com desconfiança. Alguns não deixaram eu encher minha garrafa de água na torneira dos seus jardins. Começava entender algumas coisas que São Francisco viveu. O motivo pelo qual ele se preocupava tanto com os pobres e doentes, como essas pessoas são tratadas pela sociedade. E também tentava entender como eu fiquei alheio a tudo isso, só pensando em mim, tendo pena de mim. Essa caminhada foi transformadora. Li o livro e fiquei impressionado com a história dos santos. Revi o que escrevi a pedido do padre Godofredo. Comecei a rezar de manhã e de noite a oração de São Francisco, pensando nas palavras. Agradeci até os momentos em que me trataram mal no caminho, porque me ajudaram a me entender melhor. Na Capela Santa Clara, chorei. Decidido a fazer tudo diferente, pelo menos até minha morte. Segui até a matriz. O sol já estava se pondo. Quando fui até o fundo da igreja, o padre me esperava. Apesar de sério, seus olhos sorriam. Estava feliz e orgulhoso por mim. Sentei e ficamos em silêncio Queria falar tudo, mas sabia que não precisava.
- É muito bom ganhar uma segunda chance, não é filho? Tenho certeza que você saberá vivê-la. Tome esse tau, a cruz de São Francisco. Você merece usá-lo. Você está curado, José.
Eu agradeci. Coloquei o tau em meu pescoço. Quando ele falou em curado, pensei na minha alma, na minha vida, não no meu corpo. Não acreditava em milagres. Quando nos despedimos ele pediu para eu não esquecer minha promessa para as crianças da Casa Lar e que além do tio Antônio eu visitasse de vez em quando os asilos.
A vida foi corrida nos dias seguintes. Trabalhava, cuidei do tio, fui ser voluntário na Casa Lar outras vezes. Fui umas duas vezes na Igreja Matriz, mas não encontrei o padre. Uns 15/20 dias depois, fui chamado no posto de saúde porque os exames que tinha feito na semana anterior deram problema e precisava fazer de novo. Refiz os exames que eram uma tomografia e Raio X. Uns 15 dias depois fui no médico e ele, meio sem jeito, me disse que tinha dado um erro no primeiro exame e que na verdade eu não estava com câncer. Pediu desculpas pelo estresse causado, algo assim. Olhei para ele e perguntei:
- Estou curado?
- Não, José. O senhor nunca esteve doente. Acho que devem ter trocado os seus exames ou a máquina estava com defeito.
Ele achava isso, mas eu sabia que a verdade era outra. Eu nem acreditava. Ganhei minha segunda chance. O padre me curou. Saí dali e subi o morro da igreja. Queria contar para o padre. Não sabia bem onde encontrá-lo, então fui na casa paroquial e pedi para falar com o padre Godofredo. As mulheres que estavam lá me olharam como seu eu fosse louco. Expliquei como ele era, sua roupa de franciscano, os cabelos brancos. Uma delas, uma senhora mais velha, falou:
- É, pela tua descrição é o Frei Godofredo, sim. Mas ele já morreu, moço. Há mais de dez anos, já.
- Não. Eu, eu…
Parei de falar, porque comecei a entender o que estava acontecendo. Iam me achar louco. Saí dali e fui para a igreja, direto pro fundo. Ele não estava no banco, mas fui lá para esperar. Quando ia sentando, vi o Frei do outro lado. Fui até ele, sem saber o que falar. Mas disse:
- Estou curado, Frei. Obrigado. Não sei se mereço o seu milagre, mas prometo fazer tudo diferente. Não vou esquecer nada disso.
- José, você se propôs a mudar. Você mudou. Metade deste milagre aconteceu porque você o fez acontecer.
- Frei Godofredo… desculpa chamar o senhor de padre, eu não sabia. O senhor é um fantasma?
Lembro que ele riu, acho que foi a primeira vez que vi ele rindo.
- Eu ganhei a honra de voltar e cuidar dessa cidade. Aqui na igreja ou no hospital procuro continuar o trabalho que comecei. Não material, mas um trabalho para a alma das pessoas que estão se afastando muito da vida franciscana. Meu corpo não está mais vivo, mas não posso dizer que sou um fantasma, como vocês dizem. Como protetor dessa cidade sou algo mais, mas isso não vem ao caso nesse momento.
- Acho que entendo. O senhor é um santo, não é?
- Eu sirvo ao Senhor, filho. Estou aqui para cuidar dos pobres filhos de Deus, como fez São Francisco.
- Vou contar para todos o seu milagre, Frei.
- Ainda não, José.
- Por que? As pessoas sabendo o que houve vão voltar pra vida franciscana como o senhor quer.
- Não é o momento. Poucos vão acreditar em você. Quando a vida está boa, as pessoas não se importam com os outros ou com Deus. Daqui uns anos, vocês passarão por um momento muito difícil. As pessoas estarão recolhidas, esse será o momento.
- Quando?
- Venha me visitar aqui na igreja todo 12 de agosto. Foi o dia que nos encontramos. Quando chegar o momento, estarei te esperando aqui novamente e direi o que você deve fazer e como. Até lá, viva sua vida. Namore, case, tenha seus filhos, cuide de quem precisa.
- Não vou mais ver o senhor, Frei?
- Só quando chegar o momento de você e os outros contarem suas histórias. Por enquanto, a escreva e deixe guardada. Que Deus te abençoe.
Daí ele sumiu. E eu fiz o que foi pedido. Todo 12 de agosto vou na igreja. Procuro saber mais da vida do Frei Godofredo. Soube que ele é o responsável pela construção da Igreja Matriz de Gaspar, do Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e da Escola Frei Godofredo. Entendo agora porque tive que construir minha mudança e minha cura, porque ele foi um homem que realizou coisas, que fez acontecer e sabe que nada vem de graça nessa vida. Entendo porque ele voltou para cá e é o protetor dessa cidade. Ele ama muito esse lugar.
Estamos todos nessa agonia de pandemia de coronavírus. Algumas vezes me perguntei se era sobre isso que Frei Godofredo me falou em 2005.
Chegou dia 12 de agosto de 2020 e fui na igreja. Sentei no último banco e rezei. Pedi saúde e proteção para minha esposa e minhas filhas. Quando levantei a cabeça, ele estava ao meu lado. Como senti saudade de ver e falar com o Frei Godofredo. Sorri, queria abraçá-lo. Mas como?
- Oi, José. Estou muito feliz em ver como está a sua vida, em ter você sempre comigo, com São Francisco e com Deus. Chegou o momento. Muitos precisam de cura. Muitos querem a cura de seus filhos, pais, irmãos, esposas, maridos e amigos. Vou explicar como você vai fazer para contar a história da sua cura. Você ainda não vai revelar o seu nome. Esse chamado chegará a quem quer escutar, a quem agir com fé. Quando outros milagres acontecerem, você será chamado a provar a sua cura. E eu direi quando e se você o fará. A sua história com Deus é mais importante. Conte a todos os "compromissos dos 7 dias". Esse é o começo da cura. Alguns precisarão de 6 semanas, cada dia transformado em uma semana, mais a peregrinação. Outros, de 6 meses e depois a peregrinação. O compromisso de cada dia sendo cumprido ao longo de 1 mês. Muitos acharão fácil. Só perceberão que falharam no fim do sexto dia, daí precisarão fazer as 6 semanas, mais a peregrinação. Ou os 6 meses. O ciclo só se completa com a peregrinação da Capela de São Francisco até a Capela de Santa Clara. As pessoas que estão doentes não poderão fazer a peregrinação, mas seus parentes e amigos poderão fazer por elas. O filho pode tomar o cajado e peregrinar por seus pais, os pais peregrinar por seus filhos ou amigos peregrinarem por aqueles que amam. Na Igreja de Santa Clara, acendam uma vela para os seus doentes. Com fé e amor ao próximo vocês poderão mudar suas vidas e a história dessa cidade. E você, José, está na hora de peregrinar novamente. A partir de agora, além da caridade, seu compromisso será fazer esse caminho uma vez por ano. Aos poucos as pessoas seguirão o teu exemplo e dos outros que ajudei nesses anos. E essa cidade será um exemplo de vida franciscana. Sempre acreditei em vocês.
Ele também disse que eu devia procurar alguém que soubesse usar o computador, porque essa história deveria ser escrita no computador e enviada para os jornais. Santa Clara iria iluminar alguém para publicar, porque essa pessoa tem devoção a Santa e que essa pessoa entenderia a importância de tudo isso. Espero que essa pessoa esteja de coração aberto.
Meu nome foi trocado. Do meu pai e tio também. Isso para vocês saberem que não quero aparecer. Quero que vocês conheçam os compromissos dos 7 dias e a Peregrinação de Frei Godofredo e se curem, que curem os seus, que possam conquistar o que conquistei"
O autor do texto é desconhecido. A redação do Cruzeiro do Vale recebeu a história em 15 de agosto de 2020 e publicou em 25 de agosto de 2020. Não há informações se o texto é ficção ou realidade.
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Nota da redação
- Frei Godofredo Sieber nasce em 12 de agosto de 1902 na Alemanha
- Em 2 de dezembro de 1934 é ordenado padre em Petrópolis/RJ
- Em 11 de janeiro de 1938 chega a Gaspar/SC como Pároco da Igreja Matriz São Pedro Apóstolo
- Em 1948 é transferido para Concórdia/SC
- Em 11 de fevereiro de 1962 assume novamente a paróquia de Gaspar
- Em 1968 é transferido para Petrópolis/RJ
- Em 12 de outubro de 1992 morre em Petrópolis/RJ
- Em 13 de outubro de 1992 é sepultado no Cemitério do Convento do Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis/RJ
- Em 12 de outubro de 1999 seus restos mortais são transferidos para Gaspar/SC (na Igreja Matriz São Pedro Apóstolo)
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