Dizer-se o que não é exatamente o que se acredita que seja. O nome disso é mentira. Eu formulei este conceito para poder excluir compreensões distorcidas por transtornos de qualquer ordem. Se, por motivos emocionais, eu desvirtuo os fatos, de maneira a contornar desconfortos insuperáveis, não estaria mentindo, pois estaria pressionado por dores emocionais invencíveis. Mentir, então, é mentir mesmo, é não dizer a coisa exatamente como se sabe que ela é: aumentar, mitigar, distorcer, suprimir, acrescentar, escamotear, etc.
Há casos em que a mentira é perfeitamente legítima. O exemplo extremo é o do judeu que negava sua condição a um nazista, simplesmente para não ser morto. Mas há coisas mais singelas, que, igualmente, legitimam a mentira. Se pais autoritários cerceiam exageradamente o ir e vir da filha, não se pode condenar o ¨vou dormir na casa da amiga para estudar¨, e, de lá, o ir para as festas que a vida oferece, às quais a menina tem direito. Existe a mentira misericordiosa, dita, talvez indevidamente, ao doente, ou à moça não tão bonita assim. Há, inclusive, a regalia de mentir: ninguém é obrigado, ao depor em juízo, a produzir prova contra si.
Mas, e a mentira gratuita? Aquela que não é transtorno ou misericórdia, nem é legítima. Não creio que haja um mentiroso sem necessidade psicológica de sê-lo. Uma necessidade, contudo, explica o mentiroso; não o justifica. Ninguém pode simplesmente atender as suas necessidades, desconsiderando os danos emocionais e de relacionamento que causa ao seu redor. Uma necessidade não é, forçosamente, insuperável. Quem mente tem que optar entre as dores de saber-se um mentiroso e as dores de encarar uma verdade que lhe seja difícil. A própria decisão de optar é dolorida. Mas, quem pode viver sem opções?
O mentiroso mente, antes de tudo, para ele mesmo. Auto engana-se de que enganou o próximo. E não tem vergonha de mentir. Se tivesse, não mentiria. E não é exatamente de ser descoberto que tem medo. Apavora-lhe é que se descubra a verdade. Envergonha-se de algo escondido, a verdade. Esta verdade, normalmente, o envolve. O mentiroso tem vergonha da verdade em que está envolvido. Então, cria uma realidade mentirosa e tem que sustentá-la com outras mentiras. Isto não lhe é confortável, mas menos confortável é a realidade que deseja esconder. Cria um mundo de mentiras e vai morar nele.
Este mundo de mentiras é construído sobre um monte de mentiras boazinhas, pregadas para si mesmo. O mentiroso se convence de que está convencido (no fundo, sabe que não está) de que mente para o bem da vítima, ou de que é melhor assim, ou de que está pregando a última mentira. O mentiroso, em momentos de verdade, sabe que os outros sabem que ele está mentindo e que ele não vai parar. No mundo, quem mente vai sendo desmoralizado, vai se desmoralizando, vai se desmoralizar. Os amigos devem-lhe duas coisas: um espaço afetuoso, que lhe abrigue a verdade escondida, e uma cobrança, para que pare de mentir. Aturá-lo é fazer-lhe mais mal do que o mal que ele se faz.
Léo Rosa de Andrade
edição 1292
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