23/11/2018
Pés calejados que chegavam a doer. Roupas encharcadas e sujas. Nas costas, uma mochila com água e pão com linguiça. No bolso, papel e caneta. Nas mãos, a câmera. No corpo inteiro, cansaço. Muito cansaço.
Já escrevi muitas reportagens, entrevistei centenas de pessoas e descrevi milhares de situações. Mas, as primeiras linhas deste texto fazem parte de algo que nunca, na vida inteira, pensei que eu fosse descrever. É a minha situação durante a cobertura da grande tragédia de 2008.
De vez em quando, me pego pensando: quando decidi sair de casa, em plena catástrofe, para fazer fotos e matérias desse avalanche de tragédias que pegou Gaspar e Ilhota de surpresa, eu sabia que teria para onde voltar. Sabia que, ao final de muito trabalho, minha família estaria me esperando. Que minha esposa estaria com a janta pronta, porque sabia que eu chegaria roxo da fome. Que meus filhos, ainda crianças, estariam ansiosos me esperando. E que minha cama estaria quentinha, para que eu descansasse depois de longas e longas caminhadas em meio à devastação.
E é nesse momento que começo a lembrar de todas as pessoas que vi durante meu trabalho de cobertura da tragédia. Daqueles pais, que perderam seus filhos e não puderam dizer um último ‘eu te amo’. Dos casais, que não conseguiram correr mais rápido do que a avalanche de terra. Das crianças, que não realizaram seus sonhos. Dos idosos, que não aproveitaram a melhor idade. Das muitas famílias que não tiveram para onde voltar quando tudo se acalmou. E dos 20 moradores de Gaspar e dos 32 de Ilhota que perderam a vida de forma brutal.
A tragédia de 2008 deixou muitas marcas. Quem viveu na pele tem feridas que jamais vão cicatrizar. E quem não estava lá no exato momento, como eu, mas que foi para as localidades atingidas logo em seguida, terá sempre na memória as imagens de destruição e de calamidade. Aquelas cenas nunca vão sair da minha cabeça. Já faz 10 anos que os morros viraram gelatinas e desceram carregando tudo: pessoas e esperança de dias melhores. É quase impossível descrever o que eu vi. Mas as imagens podem mostrar um pouco no que se transformou Gaspar e Ilhota. Parecia cena de guerra. Era destruição para tudo quanto é lado. As casas que não estavam completamente no chão estavam abandonadas. Empresas estavam destruídas. Pessoas e sonhos soterrados.
Naquele época, não tínhamos a tecnologia de hoje. Os celulares eram limitados e as poucas torres de transmissão ficaram sem sinal. WhatsApp, então, nem pensar! A solução para levar notícias aos leitores foi utilizar o site do Cruzeiro do Vale. Eram centenas e centenas de pessoas acessando simultaneamente as informações 24 horas por dia. Profissionais de grandes jornais do país me ligavam pedindo fotografias e informações sobre a catástrofe.
Foi muito difícil fazer a cobertura da tragédia. Eram poucos lugares que conseguíamos ir de carro. A maior parte do caminho era feito a pé, pela mata ou em meio à lama. Me lembro da primeira ida ao Baú, em Ilhota, após a tragédia. Foi de helicóptero. O então prefeito Ademar Felisky disse ao comandante da aeronave que eu era seu assessor. Só assim consegui embarcar de manhã cedinho para fazer meu trabalho. Ao desembarcar no local conhecido como Tifa do Grahl, as cenas eram de terror. Me juntei com alguns bombeiros que haviam acabado de desembarcar. Eu conhecia bem a área. Os bombeiros, por serem de fora, nem tanto. Naquele momento, os últimos moradores estavam sendo removidos do Baú ao Centro de Ilhota. Impossível descrever a cena das pessoas indo embora daquele jeito: tristes por fora e despedaçados por dentro.
Durante todo aquele dia, coletei informações, fotografei e filmei. Por volta das 16h, ninguém tinha almoçado ainda. Em uma casa atingida e abandonada, onde consegui um pacote de arroz e carne picada. Pegamos um tacho, colocamos água e o alimento coletado. Lembro que a cara não era boa. Mas, diz o ditado que ‘gato com fome come até sabão’. Quando a comida estava quase pronta, consegui carona para voltar para casa na última aeronave que iria para o Centro de Ilhota naquele dia chovoso. Era o último espacinho. Se não, eu teria que dormir por lá mesmo.
Em outra ida ao Alto Baú, lembro de ter ido de caminhão até a Cascata Cascaneia. Depois, me embrenhei em meio à mata. Fui com uns amigos que haviam perdido vários familiares soterrados. A maioria ainda estava debaixo dos escombros. Saímos às 5h da manhã para chegar lá por volta do meio dia. O trajeto era muito perigoso. Acredito que o Alto Baú tenha sido o epicentro da catástrofe. Foram muitas mortes e feridos. Eram relatos tristes e assustadores. É neste local que a bebezinha Larissa Schwambach, de 11 meses, um anjinho que morreu com sua mãe, ainda não foi encontrada. Uma semana antes dessa grande tragédia eu estive lá para fazer a cobertura dos 25 anos de sacerdócio de frei Pedro da Silva. Era um momento festivo, com toda a família reunida. A festa foi na capela Nossa Senhora Aparecida. Ninguém imaginava que alguns dias depois o local ia estar completamente destruído. O próprio frei Pedro perdeu muitos familiares.
Esse dia que passei no Alto Baú me fez muitos calos nos pés. O cansaço me dominou. Não lembro mais quantos quilômetros andei a pé. Acredito que deve ter chegado em torno de 50 quilômetros.
Muitas cenas me chocaram. Mas, o que me cortou o coração, foi entrar em uma casa no Baú e, na cozinha, encontrar a mesa posta. Deu pra ver que a família saiu correndo com medo. No varal da mesma casa, as roupas estavam penduradas. Deu um nó na garganta ver aquilo. Me coloquei no lugar daquelas pessoas. Podia ser comigo. Ou com você.
Em outra casa, encontrei muitas galinhas presas num galinheiro. Estavam com fome. Não tinha trato para alimentá-las. Não tinha moradores. Também havia uma cadela que tinha criado vários cachorrinhos. Ela também estava faminta. Abri a porta do galinheiro e deixei a natureza fazer sua parte. Dias depois, passei por lá é só vi penas de galinha. A cadela alimentou seus filhotinhos. Não sei se fiz certo. Mas, era o que podia no momento.
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