Na infância e adolescência, os haitianos Senellin Heralhs e Asnel Serafim já tinham vivido mais do que a maioria das pessoas numa existência inteira. Já haviam conhecido a fome e a violência em Porto Príncipe, capital do Haiti, o país mais pobre das Américas. Já tinham descoberto que o regime político haitiano era tão desigual quanto um trabalho em tempos passados de escravidão.
O semblante sério da dupla que trabalha em uma empresa de embalagem de Gaspar simboliza o foco dos haitianos em Gaspar em buscar um horizonte de vida diferente ao do Haiti. “Embora a vida lá seja muito dura, no Brasil não tem sido tão fácil, pois o custo de vida está ficando alto e o trabalho não tem rendido ainda recursos suficientes para obtermos uma qualidade de vida que desejamos. Temos familiares em nosso país e enviamos dinheiro a eles, mas o dólar alto tem sido um adversário duro de ser batido”, relata Senellin, morador do bairro Coloninha.
Há dois anos em Gaspar, Senellin aponta que o Natal comemorado em seu país se assemelha com o do Brasil, com festas mais voltadas para o seio familiar e para amigos próximos. “São meio parecidos nesta época do ano os hábitos dos dois países. Temos passado o Natal mais com nossos familiares e amigos haitianos. A saudade de nossa família que está no Haiti é grande”, conta.
Asnel, de 32 anos, é apaixonado por música e, sempre que pode, costuma tocar violão para alegrar a vida de amigos haitianos e gasparenses. “Moro com meu primo há um ano e meio no bairro Coloninha e, de maneira geral, procuramos buscar o nosso espaço profissional e uma convivência saudável com os moradores de Gaspar. A cidade é boa para construir uma família. Sobreviver é preciso e, feliz, é melhor ainda”, declara Asnel, que passará este Natal ao lado do primo e amigos do Haiti e gasparenses mais próximos.
Linha do tempo | A história do Haiti
1492: Colombo descobre a América ao chegar à ilha. Em 1697, a Espanha cede à França o território atual do Haiti.
1801: Um ex-escravo, Toussaint Louverture, proclama a independência. Seguem-se 100 anos de conflitos.
1915: Os EUA invadem o Haiti e permanecem controlando o país até 1947.
1956-1991: País passa por governos militares de Papa Doc e Baby Doc. Em 1991, Jean-Bertrand Aristide lidera fase democrática até 2004
2004: ONU aprova missão de paz, liderada pelo Brasil. Em 2006, novas eleições são realizadas.
2010: Terremoto devasta o país e mata 200 mil pessoas em janeiro
Integrante do Grupo Raízes do Vale, que luta pelo direito dos afrodescendentes na região, Almir Antônio Tavares, operador de máquina e morador do bairro Santa Terezinha, tem “a causa dos negros em seu coração”, como costuma dizer. Próximo, como poucos, dos haitianos moradores de Gaspar, Almir relata que a maioria dos haitianos veio para Gaspar no final de 2012, com a liberação de vistos por parte do governo brasileiro.
“Eles estão residindo, em sua maioria, nos bairros Barracão, Bela Vista, Coloninha e Margem Esquerda. São mais de 500 atualmente que residem em Gaspar. Aproximadamente 20 famílias de haitianos estão estabelecidas na cidade e já trouxeram seus filhos e parentes próximos. Os demais ainda estão com um pé no Brasil e um no Haiti, lutando por uma melhor sobrevivência, muitas vezes com até três empregos em empresas de produção, postos de combustível e serviços terceirizados à noite. Há muito dificuldade de eles enviarem dinheiro para suas famílias no Haiti devido ao dólar alto”, confirma Almir.
De acordo com Almir, os haitianos estão aprimorando o idioma da língua portuguesa e aprendendo a lidar com barreiras preconceituosas ainda existentes em Gaspar. “Em 2016, há boa perspectiva de termos aulas de português para os haitianos. Eles têm se virado, pois retornar para o país de origem deles seria pior ainda no momento. Muitos até estranharam quando se depararam com carne, pois estavam habituados a se alimentar somente de frutas e verduras. Há ainda preconceito. Se para os negros a convivência é árdua, imagina para os haitianos”, destaca.
De acordo com o grupo de Gaspar Afro Raízes do Vale, já houve em Gaspar casamentos entre haitianos e gasparenses. Segundo o cartório de registros civis, foi oficializado um casamento, além de quatros nascimentos e um óbito.
A Associação Haitianos e Amigos de Brusque tem lutado pelos direitos dos haitianos na região do Vale do Itajaí. Priscilla Miglioli, uma das integrantes da direção, destaca a força de vontade dos haitianos em respeitar a cultura do povo brasileiro. “Os haitianos estão tentando se integrar para fazer parte da comunidade seja através de um sorriso e de gestos educativos, como um simples ‘bom dia’. O desenvolvimento deles em nosso idioma, que é uma das principais barreiras inicialmente, é impressionante. É um povo muito trabalhador e esforçado”, frisa.
De acordo com Priscilla, em Brusque, por exemplo, não há órgão específico que cuide dos assuntos dos haitianos. “O acolhimento é uma etapa que está sendo vencida pouco a pouco, mas questões burocráticas como revalidação de diplomas e históricos escolares poderiam ter uma melhor atenção. Apesar de ainda sofrerem preconceito, os haitianos lutam por mais qualidade de vida para eles e para as famílias no Haiti".
Com relação ao Natal, Priscilla acredita que os haitianos precisam que os brasileiros demonstrem o espírito natalino não somente em uma data especial, mas durante o ano todo. “O Natal é mágico, mas cada um precisa fazer a sua parte pelos imigrantes e pela sociedade em geral todos os dias”, pondera.
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